No final de 2018, a Receita Federal do Brasil publicou a Instrução Normativa nº 1.861, que consolida as regras tributárias sobre importação por conta e ordem de terceiros e sobre importação por encomenda.
Além de aglutinar em um único texto a regulamentação das duas modalidades de importação indireta, que até então constavam em instrumentos normativos individuais1 – agora revogados -, o ato também incorporou as orientações relativas à emissão das notas fiscais e à escrituração contábil quanto às operações de importação por conta e ordem de terceiros, antes previstas nos artigos 86 a 88 da Instrução Normativa SRF nº 247/2002, bem como estabeleceu disposições análogas com relação à importação por encomenda.
Por fim, foram incluídas também, de forma pontual, algumas novas proposições a respeito da matéria.
Sob o ponto de vista funcional, revela-se construtiva a publicação desta Instrução Normativa, na medida em que a reunião das regras antes esparsas em um único estatuto combinada com a inclusão de novas disposições tornam mais coesa e objetiva a execução das operações de importação indireta, fortalecendo o grau de segurança jurídica neste ramo de atuação.
Sua entrada em vigor, no entanto, não se põe livre de controvérsias.
Uma das novidades introduzidas pelo ato da Receita Federal corresponde ao parágrafo 6º do artigo 3º, que, ao cuidar da importação por encomenda, determina: “as operações de montagem, acondicionamento ou reacondicionamento que tenham por objeto a mercadoria importada pelo importador por encomenda em território nacional não modificam a natureza da transação comercial de revenda de que trata este artigo”.
De acordo com tal preceito, em certas operações de importação envolvendo importador e adquirente doméstico vinculados por contrato prévio firmado entre ambos, a alienação da mercadoria que sofreu processo de industrialização por parte do importador não lhe retira a natureza de revenda.
Vale consignar, nesse sentido, que os incisos III e IV do artigo 4º do Decreto nº 7.212/2010 (Regulamento do IPI) enquadram as atividades de montagem, condicionamento e recondicionamento como modalidades de industrialização.
Nesse aspecto, uma rápida digressão ao caput do mencionado artigo 3º nos indica que a definição de importação por encomenda pressupõe, dentre outros requisitos, uma operação de revenda de bem pelo importador a encomendante predeterminado.
Portanto, nota-se que a Instrução Normativa RFB nº 1.861/2018 ampliou o campo de incidência das regras relativas à importação por encomenda, agregando a tal figura aquelas operações em que o importador aliena mercadoria industrializada a partir de bens importados a adquirente predeterminado, desde que aludida industrialização represente as modalidades de montagem, acondicionamento ou recondicionamento.
Poderia, contudo, a Receita Federal alargar a definição de importação por encomenda, por meio da edição de Instrução Normativa? À luz da legislação de regência e dos princípios tributários, seguimos o entendimento de que isso não seria possível.
O fundamento legal sobre a definição da importação por encomenda sustenta-se no artigo 11 da lei nº 11.281/2006, que a condiciona à importação de bem do exterior para revenda a encomendante predeterminado. Não há qualificação alguma no que se refere ao alcance do vocábulo “revenda”.
Com efeito, nos termos dos limites impostos por lei, as regras tributárias aplicáveis à importação por encomenda circunscrevem-se somente às operações de revenda. Contrario sensu, todas aquelas operações estranhas a esta noção habitam fora do campo de incidência da norma.
Não se afigura plausível, assim, que estas mercadorias sejam consideradas como revendidas, posto que tal aspiração contraria a própria semântica do termo – cujo prefixo “re” exprime a ideia de repetição. Revende-se, portanto, um bem que foi adquirido anteriormente, repetindo sua venda, tendo este fluxo, em essência, caráter de continuidade.
Se o bem passou por processo de acondicionamento ou recondicionamento ou, ainda, constitui o produto da montagem de outros bens que lhe confira nova unidade autônoma, nasce um novo tipo de operação, absolutamente dissociado daquele realizado previamente. Ou seja, rompe-se o caráter de continuidade peculiar à revenda. Trata-se, assim, de uma venda de nova unidade, seja pelo fato de ter como objeto um produto diferente daquele importado (adquirido), seja pelo fato de lhe ser integrada ou substituída uma embalagem, alterando sua apresentação.
Embora tal raciocínio fique mais nítido no caso do processo de montagem, já que o resultado redunda em um novo produto, também nas outras duas hipóteses a natureza de revenda se desvanece, dado que o caráter binário do fenômeno (venda – revenda) extingue-se a partir da interposição de uma nova operação na cadeia comercial (venda – industrialização – revenda). A operação de revenda não comporta agregação de valor ao bem objeto da transação no intervalo entre sua aquisição e sua posterior alienação, o que ocorre nos casos de montagem, acondicionamento ou recondicionamento. Daí transparecer límpido que a venda de produto importado objeto de tais modalidades de industrialização a adquirente predeterminado não se enquadra como operação de importação por encomenda.
A indevida ampliação do termo consumada pela Instrução Normativa RFB nº 1.861/2018, assim, viola o princípio da legalidade, dado que alarga a definição do fato gerador de tributo sem previsão em lei que a ampare. Denota-se, no caso, invasão de competência de órgão vinculado ao Poder Executivo sobre matéria constitucional e exclusivamente atribuída ao Poder Legislativo.
Merece destaque também o comando do artigo 110 do CTN, que veda à lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, nos termos ali previstos.
A implicação prática diante das incertezas advindas da assimetria de definições provocadas pela inovação normativa em exame, ocasiona, a princípio, três riscos fiscais a que os contribuintes estão sujeitos: enquadramento incorreto do importador entre as modalidades de importação direta e indireta – o que pode implicar autuação por interposição fraudulenta de terceiros; equiparação a estabelecimento industrial por parte dos atacadistas ou varejistas que adquirirem produtos importados por encomenda e a incerteza quanto à necessidade de aplicação das regras de preço de transferência ao importador e ao adquirente do produto no mercado interno, a teor do que dispõe o artigo 14 da Lei n° 11.281/2006.
A questão, que já vinha sendo objeto de controvérsia entre Fisco e contribuinte, ganha um novo elemento, cuja discussão certamente alcançará os órgãos de julgamento da esfera administrativa e do Poder Judiciário.
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1 Instrução Normativa SRF nº 225/2002, que versava sobre a importação por conta e ordem de terceiros, e Instrução Normativa SRF nº 634/2006, que tratava da importação por encomenda.
[…] recentemente da importação por encomenda, onde mencionamos brevemente sobre as três possibilidades de importação que a nossa legislação […]